Gostaria muito de bater um papo com meu pai, mas ele anda tão ocupado. Mesmo quando ele chega em casa, seu cansaço é por mais visível; não me atrevo a chegar perto dele para falar nada; ainda mais, quando aquela ruga no meio da sua testa aparece, sinalizando que algo vai mal. Nestes momentos me mantenho a uma distância segura. Não tenho coragem de perguntar o que está acontecendo; embora eu ache que já sou grande o bastante para participar das decisões da minha família. Quem sabe, poderia eu ajudá-lo de alguma maneira?
Às vezes fico com a impressão de que eu sou o problema. Tenho feito de tudo para que ele sinta orgulho de mim; mas parece não notar e se nota nada fala; talvez para não dar o braço a torcer, manter a autoridade e não deixar acabar o respeito. Deve ser porque ele acha que assim produzo mais e serei mais homem. Sei que meu pai me ama; no entanto, ele nunca diz nada ou faz um gesto para demonstrar seu amor. Eu sinto orgulho dele, mas como ele, me silencio. Papai é um homem bom e trabalhador. Sua vida tem sido dedicada a família; ele ama a Deus e a mamãe profundamente.
Gostava mais do tempo quando eu era criança. Meu pai me dava mais atenção e brincava comigo freqüentemente. Sinto saudades daqueles dias. Naquela época, ele não ficava tanto tempo no trabalho e nem tinha tantas responsabilidades na igreja. Há um dia em especial que jamais esquecerei. Foi o dia no qual papai se tornou meu herói. Eu tinha uns seis anos.
Papai havia me presenteado com algumas bolinhas de gude. Não vendo a hora de revelar minhas habilidades com as bolinhas, fui para frente da igreja, onde havia um terreno vazio. Lá, a garotada apostava, jogando bolinha a valer. A criançada vibrou quando me viu chegar com o bolso cheio de bolinhas novinhas. Eles iriam se esbaldar; eu seria o “pato” da hora. Com apenas algumas jogadas os meninos maiores, sem dó nem piedade, me deixaram completamente “limpo”. Todas as minhas reluzentes bolinhas mudaram de dono rapidamente. Como o jogo era a “vera”, não havia nada que eu poderia fazer, a não ser me lamentar. Foi aí que papai chegou.
Na mesma hora, ele indagou o que estava acontecendo; pois notara a minha cara de choro. A princípio, com um jeito gentil e educado, ele pediu aos meninos que devolvessem as minhas bolinhas. Os garotos argumentaram que eu sabia que o jogo era pra valer; eles ganharam as bolinhas justamente. Papai respondeu que eu era muito pequeno e que não sabia o que estava fazendo. Além disto, eles haviam aproveitado da minha inocência, pouca idade, e falta de destreza com as bolinhas para ganhá-las de mim. Os jogadores ficaram impassíveis. Ninguém estava disposto a devolver as minhas valiosas bolinhas; elas eram toda a minha fortuna. Então, meu pai sentenciou: ''Se é justo vocês jogarem com meu filho, que é bem menor do que vocês, então será justo que eu também jogue contra vocês; me vendam algumas bolinhas e vamos reiniciar o jogo''.
Antevendo um bom negócio, imediatamente os meninos venderam algumas bolinhas para papai; meu pai seria o próximo ''pato''. Logo eles iriam recuperar as bolinhas e ainda ganhariam algum dinheiro. Fiquei de lado extasiado e feliz com a atitude de papai. Enquanto papai arregaçava as mangas da camisa, os meninos se entreolharam marotos. Iniciando o jogo, alguém gritou rapidamente, ''marraio!'' Com esta palavra, o esperto portador da voz desconhecida seria o último a jogar a bolinha em direção ao risco, o que lhe daria uma certa vantagem ao tirar o ponto para começar o jogo. Aquele foi o jogo mais espetacular que assisti em toda a minha vida. Uma a uma, as bolinhas eram atingidas por meu pai em ''buscadas'' certeiras. Eu, e os antes, impiedosos jogadores, mal podíamos acreditar no que estava acontecendo. Os meninos foram se rendendo a habilidade de papai; perderam todas as bolinhas. Uma lata cheia me foi entregue por papai. Abracei a lata de Neston, que eu mal podia carregar por causa do peso, tal era a quantidade de bolinhas. Olhei para os meninos com ar triunfante; agarrei a mão que papai me estendia e voltei para casa me sentindo o mais feliz dos mortais. Ainda hoje, quando me lembro dos olhares derrotados e maravilhados dos garotos, sinto um enorme orgulho de papai; mas mesmo assim algumas coisas teimosamente me incomodam.
Por que não consigo dizer para o meu pai o que sinto a respeito dele? Por que os pais têm tempo de passear com os filhos enquanto eles são pequenos e estão tão ocupados quando eles se tornam jovens? Por que não dá mais para segurar a mão de papai e caminhar ao seu lado como naquele extraordinário dia do jogo de bolinhas? Por que com o tempo os pais perdem a alegria e deixam de brincar com os filhos? Por que é tão difícil conversar com papai e somente trocamos algumas sílabas a cada semana? Porque papai ficou tão sério e arredio? Por que nossos assuntos se tornaram por demais diferentes e controversos? Por que ao invés de me defender, como antes, papai me culpa por tudo e me dá tanta bronca como se eu quisesse errar de propósito? Por que os mais velhos não vêem espiritualidade no riso e nas brincadeiras? Gostaria tanto de entender papai e conversar um pouquinho com ele.
Bem que Deus poderia me fazer entender todas estas coisas. Deus bem que poderia me emprestar meu pai pelo menos por um domingo. Assim poderíamos freqüentar os lugares da minha infância. Comer cachorro quente e pipoca; remar um barco e andar de bicicleta; chutar uma bola e mergulhar num rio; soltar pipa e subir numa árvore. Eu poderia então correr para os braços fortes de papai; ele me rodaria no ar até eu ficar tonto; nossas risadas gostosas se casariam uma a outra, e eu beijaria seu rosto, mesmo sendo arranhando por sua barba. Que tempo bom foi aquele; nos divertíamos a valer. Pena que tudo isto se acabou! Naquela época nós éramos realmente felizes! Papai era bem mais meu e eu não o dividia com ninguém.
Silmar Coelho é pastor; doutor em teologia e liderança pela Universidade Oral Roberts, EUA; empresário; terapeuta; conferencista internacional; e escritor de 20 livros, entre eles: ''Jamais desista'', Editora Vida e ''Transformando lágrimas em vinho'', Editora MK.
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